quinta-feira, 19 de maio de 2011

HISTÓRIAS DO RECIFE – Por Epitácio Nunes*

*Mestre em Psicologia - UFPE Pesquisador Integrado ao Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana - Lab-ESHU/UFPE Professor da Faculdade do Recife - FAREC Especialista em Psicologia Social e do Desenvolvimento – FAFIRE.

SOCIALIZAÇÃO GAY EM RECIFE

Minha chegada ao centro de Recife coincide com o período de abertura política, onde a censura se tornava mais amena com o passar dos tempos, e assim pude de certa forma, acompanhar as transformações que se deram durante e após a “revolução de oitenta”. Durante minha pesquisa de mestrado recorri a velhos amigos, com o objetivo de tentar reconstituir um pouco o processo de consolidação e socialização gay em Recife. Através dos vários depoimentos colhidos pude constatar e revelar a efervescência das transformações pós-ditadura, período em que os espaços destinados aos homossexuais e/ou as vivências homoeróticas se restringiam a determinados locais onde, invisíveis aos olhos da sociedade burguesa, tornavam-se possíveis os encontros que se desenvolviam de forma restrita e limitada. Assim, em continuidade a formação e constituição das “tribos de Recife”, resolvi transcrever alguns trechos de minha dissertação no intuito de melhor clarificar a longa trajetória da consolidação de uma cultura gay que vem se afirmando como tendência entre os jovens e adolescentes que povoam nossas ruas de mãos dadas, aos beijos e abraços. Esses adolescentes e jovens formam talvez a tribo mais alternativa e irreverente da cidade. Concentrados no maior espaço de socialização gay de Recife misturam-se e diversificam-se em estilos, categorias, ideologias e classes sociais. E aos poucos transformam o cruzamento da Rua José de Alencar com a Rua do Geriquiti, num território que concentra hoje o maior contingente representativo de diferenças, sejam elas de caráter étnico/raça, gênero, geracional ou econômico. O perímetro tem ainda se estabelecido como maior área de empreendimentos econômicos voltados ao público gay alternativo, incluindo o Shopping Boa Vista, conhecido popularmente entre os jovens como “shopping boa bicha”; o Bar Mustang, o mais antigo bar em funcionamento no centro da cidade; Bar Pithonsen, de público diversificado; Bar Sete Cores, localizado num belo e misterioso casarão antigo e uma sauna.

A BOA E VELHA PEGAÇÃO

A “pegação”, no início dos anos oitenta era basicamente feitas em cinemas que não passavam filmes pornôs, e alguns bares, entre os quais, o Savoy, na Av. Guararapes; o HC, na Rua do sossego; o Mustang, que ainda se mantém na Av. Conde da Boa Vista; o Mangueirão e o Bar da Cris, próximos a Universidade Católica, onde as azarações não eram acintosas, mas era onde se namorava e se paquerava. E onde também se podia depois acertar os futuros encontros, não necessariamente seriam sexuais. Os banheiros dos bares se destacavam como espaços onde os encontros eram certos e onde se tornava possível encontrar “homens que procuravam outros homens”. Em alguns destes encontros o dinheiro sempre funcionava como “facilitador” e/ou agenciador para as práticas sexuais de caráter homossexual. O principal ponto de pegação erão os banheiros públicos e o famoso “quem-me-quer”, que margeia o Rio Capibaribe, sempre serviram como espaços de pegação para os homossexuais da cidade. Neste ponto, vale salientar que atualmente, o espaço ainda hoje se configura como ponto de prostituição masculina homossexual, que se desenvolve no trecho localizado entre a Rua Dr. José Mariano, no perímetro compreendido entre a Ponte Seis de Março (mais conhecida como Ponte Velha) e a Ponte da Boa Vista (também chamada pelos recifenses como Ponte de Ferro). Nesse território, mais conhecido como Cais José Mariano, os vários bancos, árvores e um banheiro público serviam, muitas vezes, como espaços para as práticas sexuais comerciais e/ou encontros homoeróticos que se dão na via pública em altas horas da madrugada.onde alguns homens esperavam pelas bibas com o pau duro, deixando chupar e depois pediam o dinheiro da cerveja ou da passagem. Eram desculpas esfarrapadas, porque no outro dia eles estavam lá, do mesmo jeito. Já nos banheiros dos cinemas “São Luiz”, na Rua da Aurora; e do “Veneza”, na Rua do Hospício, as pegações eram mais discretas e se configuravam como relações homoafetivas entre entendidos (denominação usual entre os gays nos anos oitenta e noventa). Antigamente os jovens gays saiam diretamente dos colégios, localizados no centro, para os cinemas (ou melhor, para os banheiros). E quem viveu a época sabe que muita gente, em sua maioria homens, que se posicionava em pé encostado nas paredes do final da sala de projeção, pouco se interessava pelos personagens fictícios. O atrativo da sétima arte consistia mesmo em presenciar ao vivo, ou mesmo vivenciar as fortes emoções dos explícitos encontros eróticos que se davam entre homens dos mais variados tipos, idade e classes sociais. No final da década os principais cinemas do centro da cidade, como o “Moderno”, em frente a Praça Joaquim Nabuco; O “Astor” e o “Ritz” na Avenida Visconde de Suassuna; bem como o “Trianon” e o “Arte Palácio”, ambos na Avenida Guararapes, passaram a exibir exclusivamente filmes eróticos, e se tornaram espaços de circulação para prostitutas e boys de programa que atendiam seus clientes tanto nos banheiros quanto nas próprias salas de exibição. Nos dois últimos, haviam os camarotes localizados no final das salas, que nos tempos áureos serviram para demarcar as diferenças sociais, mas que, porém, no final dos anos oitenta serviram como espaços reservados as grandes “surubas” e demais práticas sexuais que envolviam tanto casais heterossexuais quanto homossexuais. Em determinadas horas, tais espaços concentravam mais gente do que mesmo as platéias, onde se tornava frequente a visualização de homens ajoelhados entre as cadeiras, meio às pernas de outros que fingiam prestar atenção ao que se passava na grande tela. Fora dos cinemas, ao que tudo indica a prática da pegação também acontecia em toda extensão da Avenida Conde da Boa Vista e suas principais ruas paralelas. Tal fato é destacado por alguns entrevistados como marco para o processo de definição e reconhecimento dos espaços e territórios gay de Recife. Desde a década de setenta, os olhares e as trocas de sinais, combinavam os encontros que terminavam nas antigas pensões do centro. E segundo o artigo publicado no antigo Jornal Lampião da Esquina (1980), irreverente publicação voltada ao público gay, a cidade já mesmo na época da ditadura militar apresentava um roteiro de espaços onde os homossexuais podiam encontrar parceiros sexuais ou simplesmente apreciar os jovens rapazes que pescavam às margens do Rio Capibaribe, “onde existe o famoso quem-me-quer, um cais de ambas as margens - Rua do Sol e Rua da Aurora, sendo que nesta última, em frente ao Cine São Luis, a pesca acontece ao contrário, quer dizer, são os peixes que se lançam a pescaria (Albuquerque Jr. & Ceballos, 2004).

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